16/06/2025
Por Jamil Assis | Diretor de Relações Institucionais do Instituto Sivis
Nos votos proferidos no julgamento sobre o artigo 19 do Marco Civil da Internet, ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) — Dias Toffoli, Luiz Fux e Luís Roberto Barroso — sustentam, com diferentes graus de rigor, que as plataformas digitais devem ser responsáveis por avaliar se um conteúdo é ou não ilícito, podendo ser responsabilizadas por falhas nessa triagem, mesmo sem ordem judicial. Na prática, é uma delegação às plataformas digitais da tarefa sensível da concretização normativa.
Como ensina o jurista alemão Friedrich Müller, leis são apenas enunciados genéricos. A norma jurídica real emerge apenas quando esses enunciados são interpretados e aplicados a casos concretos, com base em ponderação entre princípios, contexto fático e valores constitucionais. Esse processo é chamado de concretização normativa e exige autoridade institucional, publicidade e contraditório.
A filósofa do direito Katharina Sobota complementa esse raciocínio: aplicar o direito é “densificar” enunciados vagos, como “desinformação” ou “apologia ao golpe”, até que adquiram contornos específicos. Essa densificação não pode ser feita por algoritmos ou departamentos de compliance, mas por agentes dotados de legitimidade pública.
Imagine agora um exemplo delicado: uma influenciadora publica um vídeo em que critica a adoção de políticas públicas voltadas a mulheres trans no esporte feminino, argumentando que isso compromete a justiça competitiva. A fala é controversa, e inevitavelmente desagradará parte do público. No entanto, o conteúdo expressa uma opinião política em debate na esfera pública, ainda dentro dos limites da liberdade de expressão. O risco, contudo, é que a plataforma — temendo ser acusada de conivência com “discurso de ódio” — remova preventivamente o vídeo por receio de sofrer sanções ou reprimendas dos donos do poder.
Não houve decisão judicial nem ponderação entre liberdade de expressão e proteção à dignidade. Apenas o desaparecimento sumário da crítica. A censura não veio do Estado — mas da lógica de autoproteção de uma empresa privada agindo sob pressão. Trata-se de censura por proxy.
Essa lógica, embora compreensível do ponto de vista empresarial, abre um precedente perigoso para a erosão de garantias constitucionais. Ao transformar empresas privadas em árbitros do que pode ou não circular na esfera pública, o sistema compromete a previsibilidade do direito e solapa a confiança na imparcialidade das decisões. A subjetividade das regras internas de moderação, muitas vezes opacas e inconsistentes, cria um ambiente em que os usuários não sabem ao certo quais limites estão sendo aplicados — nem por quê.
Esse arranjo produz um efeito preocupante. As plataformas não julgarão a partir da hermenêutica dos direitos fundamentais, mas com base em critérios próprios — como riscos reputacionais, pressões políticas ou temor de sanções. A consequência é a supressão preventiva de conteúdos legítimos, mesmo quando juridicamente protegidos.
Como adverte o jurista pernambucano João Maurício Adeodato em seu Ética e Retórica, a aparência de neutralidade jurídica muitas vezes encobre decisões políticas travestidas de técnica. Ao afirmar que as plataformas “devem cumprir a lei”, o STF disfarça o fato de que está obrigando empresas privadas a controlar massivamente certos discursos — sem garantias processuais ou motivação pública. Resta, então, perguntar: a quem interessa retirar do Estado essa função e transferi-la para atores econômicos que operam sob a ameaça constante dos governantes?
Também é necessário indagar: quais tipos de discurso tendem a ser os primeiros sacrificados nesse ambiente de incerteza e hiperprecaução? Não são, em geral, as manifestações criminosas evidentes — que já estão tipificadas e que, quando há ordem judicial, são removidas com rapidez. Os mais suscetíveis à censura privada são os discursos politicamente impopulares, moralmente ambíguos, desconfortáveis, provocativos ou minoritários, ainda que juridicamente protegidos. São os discursos que testam os limites do debate democrático — e que justamente por isso mais precisam de proteção institucional.
Não se trata de apontar o dedo para as plataformas pelo dilema criado. Ao contrário: elas não pediram esse poder e sabem do ônus que ele acarreta. O problema é estrutural. Quando empresas são forçadas a agir como juízes, o direito se esconde — e com ele, a crítica legítima.
Destoando desse cenário, o voto do ministro André Mendonça oferece um contraponto ponderado e juridicamente consistente. Ao defender a preservação do modelo atual do Marco Civil da Internet, baseado na responsabilização após decisão judicial, Mendonça resgata o papel institucional do Judiciário como guardião da legalidade. Sua posição reconhece os riscos de se substituir o devido processo por decisões privadas, e reafirma a necessidade de que a interpretação da lei — especialmente em temas sensíveis como liberdade de expressão — permaneça sob tutela do Estado Democrático de Direito.