Precisamos dar nome aos bois

O Brasil ainda não é uma ditadura clássica porque mantém alguns ritos democráticos e institucionais. Mas tampouco é uma democracia substancial

O Brasil não é uma ditadura clássica. Realizamos eleições regulares, partidos disputam espaço no Congresso e a Constituição continua em vigor. Há imprensa, redes sociais e debates públicos. Esses sinais mantêm a aparência de uma democracia funcional, mas, por trás da superfície, acumulam-se evidências de um deslocamento estrutural que corrói seus fundamentos. O diagnóstico de índices internacionais, como o da The Economist, que nos classificam como uma “democracia falha”, é insuficiente. A verdade é mais perturbadora: vivemos uma realidade em que a democracia se encontra suspensa e o estado de exceção fica sob a máscara da constitucionalidade.

Esse estado de exceção não é declarado, como nas ditaduras do século 20. Ele se infiltra por dentro, mantendo os ritos institucionais enquanto esvazia seus contrapesos. Giorgio Agamben descreveu esse fenômeno com precisão: não é necessário fechar o Congresso ou suspender formalmente garantias constitucionais. Basta reinterpretá-las de maneira flexível, sempre em nome de um bem maior, sob a retórica da urgência. No Brasil, a narrativa predominante é a da defesa da democracia e do combate à desinformação. Sob esse pretexto, mecanismos de controle do poder são relativizados e direitos fundamentais se tornam variáveis interpretativas.

O Supremo Tribunal Federal (STF), concebido como guardião da Constituição, transformou-se em protagonista político sem freios efetivos. A Corte investiga, acusa e julga, em inquéritos que se arrastam por anos, sem prazo, sem objeto delimitado e sem transparência. Esse padrão não é episódico, mas estrutural: decisões monocráticas suspendem leis aprovadas pelo Legislativo, interferem em políticas do Executivo e redesenham regras orçamentárias. A suspensão do decreto legislativo que sustava a elevação do IOF, em 2025, ilustra a apropriação de competências sem respaldo popular.

O mesmo ocorre com direitos fundamentais. A decisão que proibiu Jair Bolsonaro de conceder entrevistas sob pena de prisão – em 21 de julho – vai além da figura do ex-presidente: fere a própria imprensa. A indiferença diante da medida revela uma cegueira personalista: princípios cedem à antipatia pelo personagem. Se fosse outro nome, a reação seria a mesma?

Não é um fenômeno isolado. Em 2019, a censura à revista Crusoé marcou o retorno da mordaça judicial. Em 2024, o bloqueio da plataforma X, seguido de multas por uso de VPNs, abriu caminho para a derrubada do artigo 19 do Marco Civil da Internet, impondo às plataformas o papel de censor privado. O bloqueio das contas da Starlink, com base em interpretação extensiva do conceito de “grupo econômico”, mostrou até onde a lei pode ser esticada. Os avanços contra dissidentes resultaram em bloqueios de diversos perfis ligados à oposição. Mas alcançaram também a dissidência à esquerda, como o PCO, silenciado sob o mesmo pretexto do combate à desinformação.

A erosão da accountability reforça esse quadro. Decisões sigilosas, inquéritos opacos e eventos, como o Fórum Jurídico de Lisboa, expõem um poder sem contrapesos. Ministros dão entrevistas e interagem com políticos e empresários processados na própria Corte, sem qualquer decoro. Enquanto isso, o Legislativo atua acuado: parlamentares são alvos de buscas, prisões e medidas cautelares. Qualquer tentativa de discutir impeachment se tornou risco político. Não por acaso, os parlamentares buscam o fim do foro privilegiado que os mantém reféns da Suprema Corte.

Não se trata de ignorar sinalizações autoritárias, como pedidos por intervenção militar. Mas meios importam tanto quanto fins. Democracias não se protegem abolindo seus próprios fundamentos. Quando um poder concentra funções normativas, executivas e punitivas, decide com base em narrativas emergenciais e atua sem controle, o Estado de Direito deixa de ser previsível para se tornar arbitrário.

O Brasil ainda não é uma ditadura clássica porque mantém alguns ritos democráticos e institucionais. Mas tampouco é uma democracia substancial. Vivemos um arranjo em que a exceção se tornou permanente, naturalizada sob a aparência de normalidade constitucional. É urgente recuperar os freios institucionais, reequilibrar os Poderes e restaurar a previsibilidade do Direito. Nesse processo, a responsabilidade do presidente do Congresso é inescapável.

A Constituição prevê instrumentos para conter abusos de magistrados que transgridem os limites do cargo. Será que, quando um ministro concentra poder sem contrapesos, viola garantias fundamentais e governa por medidas excepcionais permanentes, a abertura de um processo de impeachment, antes uma opção política, se torna necessidade institucional?

A defesa da volta ao império da lei – em oposição ao império de homens – deveria ser uma ambição de todos os atores democráticos. Há, nesse sentido, uma centelha de esperança. Mais e mais pessoas percebem que o País vive sob um estado de exceção informal e perdem o medo de dar nome aos bois. Somente chamando os fatos pelo nome, sem eufemismos, será possível romper a lógica das narrativas e restaurar a integridade do debate público.

Reproduzido do Estadão. Leia a publicação original.

Por Henrique Zétola e Jamil Assis.

Veja também

Contato da Imprensa: [email protected]