A vigilância Orwelliana do PL 4939/20

Imagine que você está trocando mensagens com um amigo, debatendo com paixão as últimas eleições. Ou que, em um grupo privado de trabalho, você critica a honestidade do seu patrão, expressando uma opinião que não compartilharia publicamente. Agora, pense que cada palavra digitada, cada busca no Google — seja sobre seu casamento ou sobre a sua saúde financeira — é registrada e guardada por um ano, mesmo que você seja um cidadão comum, sem qualquer ligação com crimes. Pior: imagine que um software espião possa vasculhar seu celular sem supervisão judicial. Esse cenário de vigilância — que parece ter saído de 1984, de George Orwell — pode se tornar realidade, se o Projeto de Lei 4939/20 for aprovado como está.

O Brasil enfrenta crimes digitais graves: golpes financeiros, roubo de dados e redes criminosas que operam online. A Justiça precisa de ferramentas modernas para combatê-los. Mas o PL 4939/20 vai além, criando um sistema de vigilância orwelliano que trata todo e qualquer cidadão como suspeito, sacrificando a privacidade de quem vive dentro da lei.

O texto permite “métodos ofensivos” — termo vago que pode incluir invasão de celulares ou instalação de programas espiões, muitas vezes sem supervisão judicial clara. Se você estiver em um grupo com alguém investigado, suas mensagens poderão ser expostas. Esses dados podem ser guardados indefinidamente, aumentando o risco de vazamentos, como já vimos em escândalos no Brasil. Além disso, o projeto autoriza empresas privadas a compartilharem ordens judiciais entre si, como extensões do Estado.

Nos últimos anos, promotores e juízes, até nas mais altas instâncias do Judiciário, têm protagonizado excessos: ordens de busca amplas, bloqueios de plataformas e invasões de privacidade sem justificativas sólidas. O PL 4939/20, com sua redação ambígua, abre espaço para mais abusos, entregando às autoridades poderes para vigiar sem freios. Saber que cada clique pode ser monitorado faz você hesitar — evita comentar uma notícia política ou pesquisar sobre temas polêmicos, temendo ser mal interpretado. Sem privacidade, a liberdade de expressão, essencial à democracia, é sufocada pela autocensura.
Em 2019, o Congresso rejeitou propostas semelhantes na Lei Anticrime, por seus riscos à liberdade. Reintroduzi-las agora exige cuidado. O deputado Fred Linhares (Republicanos-DF), relator do PL 4939/20, está em posição de ajustar o texto.

Antes de tudo, precisamos garantir que a obtenção de provas digitais siga critérios claros, técnicos e juridicamente responsáveis, respeitando os princípios da legalidade, da proporcionalidade, da privacidade e do devido processo legal. A proteção dos dados dos cidadãos não pode ser vista como obstáculo à investigação, mas como um limite legítimo à atuação do Estado.

Toda diligência deve ser documentada de forma transparente, mesmo quando não resultar em provas, para permitir o controle dos agentes do Estado e evitar abusos. O uso de tecnologias invasivas exige rastreabilidade, integridade dos dados e respeito à finalidade da medida — não se pode abrir espaço para excessos ou desvios.

É essencial que os dados sejam coletados e preservados em ambientes forenses adequados, com prazos bem definidos para sua retenção. A manutenção indefinida de cópias espelhadas viola o princípio da necessidade previsto na Lei Geral de Proteção de Dados e fere a intimidade e a presunção de inocência de quem sequer foi acusado formalmente.

Também devemos impedir que agentes públicos façam requisições genéricas ou desproporcionais a plataformas digitais, sob risco de transformar exceções em regra e comprometer direitos fundamentais. A proteção da privacidade, mesmo em investigações legítimas, é condição para que a tecnologia sirva à Justiça — e não ao arbítrio.

O Brasil pode combater o crime digital sem adotar uma vigilância que transforme cada celular em um espião e cada cidadão em um suspeito. A tecnologia deve fortalecer a Justiça, não criar um país onde todos vivem sob o olhar do Grande Irmão. A lei deve mirar o crime organizado, e não o cidadão comum. Cabe ao Congresso garantir que segurança e liberdade caminhem juntas.

Nenhuma democracia saudável sobrevive à vigilância permanente. Nenhuma liberdade resiste ao medo de ser mal interpretado. O Congresso tem a responsabilidade histórica de garantir que o combate ao crime digital não destrua os fundamentos do Estado de Direito. Segurança e liberdade podem coexistir — mas isso exige limites claros, supervisão judicial e o respeito inegociável à privacidade

Reproduzido da Gazeta do Povo. Leia a publicação original.

Por Jamil Assis | Diretor de Relações Institucionais do Instituto Sivis

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