É difícil encontrar quem discorde de que a democracia brasileira está longe de ser perfeita. Isso porque, independentemente do espectro político, persiste uma profunda desconfiança da população em relação às instituições no geral. Isto é confirmado por diversas pesquisas ao longo dos anos, sendo a mais recente a da Quaest. À direita, predominam críticas ligadas à corrupção e à ineficiência do sistema; à esquerda, destacam-se as desigualdades sociais e a ausência de uma participação popular efetiva nas decisões.
De fato, a democracia brasileira carrega vícios conhecidos, mas também sofre com verdadeiros pecados mortais. Um deles é o flerte com os fantasmas autoritários do regime militar. A falta de compromisso democrático, que se manifesta tanto no nível individual quanto nas instituições, mantém esses fantasmas vivos, culminando em episódios como o 8 de janeiro.
Ao tentar proteger-se de ataques antidemocráticos, o sistema recorre a práticas que minam seus próprios fundamentos. No longo prazo, esse ciclo não apenas perpetua os vícios, mas também alimenta a descrença popular nas instituições
Não menos mortal, porém, é a prática de combater esses atos com instrumentos igualmente antidemocráticos. O que temos observado é um sistemático desvio do devido processo legal. A título de exemplo, os indivíduos que participaram do fatídico 8 de janeiro não estão sendo julgados e condenados apenas pelos atos que de fato cometeram, uma vez que as medidas aplicadas têm se mostrado desproporcionais. Uma democracia saudável precisa, sim, responsabilizar, mas sempre nos limites estabelecidos pelo devido processo legal.
O paradoxo é claro: ao tentar proteger-se de ataques antidemocráticos, o sistema recorre a práticas que minam seus próprios fundamentos. No longo prazo, esse ciclo não apenas perpetua os vícios, mas também alimenta a descrença popular nas instituições, gerando justamente um terreno fértil para líderes populistas e autoritários prosperarem.
O voto do ministro Fux no julgamento que ocorreu em setembro exemplifica qual deveria ser a postura do Judiciário. Atos que tinham como objetivo afetar de maneira inconstitucional as instituições democráticas devem, sim, ser responsabilizados, mas pelas instâncias a quem cabe essa função. Como nenhum dos réus possui prerrogativa de foro, o julgamento deveria ocorrer em primeira instância. Quando o Judiciário amplia suas competências além do previsto, normaliza um estado de exceção, enfraquecendo a previsibilidade do Estado de Direito.
O Judiciário, como parte essencial de nossas instituições democráticas, tem um papel central na manutenção da confiança da população. No entanto, ao assumir atribuições que não lhe cabem, como legislar sobre a regulamentação de plataformas eleitorais ou, neste caso, conduzir um julgamento fora de sua competência, acaba por fragilizar a própria Constituição que afirma defender. Age de forma antidemocrática sob o pretexto de proteger a democracia, o que, na prática, mina sua legitimidade.
Quem não percebe que a democracia brasileira é atravessada por dois pecados mortais como o golpismo e a tentação de combatê-lo com práticas igualmente antidemocráticas, não compreende o que significa, de fato, defendê-la.
Texto publicado na Gazeta do Povo. Leia a publicação original.