O risco de transformar o Cade em censor digital

Há uma preocupação crescente em torno do antitruste digital, agora materializada no Projeto de Lei 4.675/2025. A proposta tem como objetivo declarado atualizar a política de defesa da concorrência diante dos desafios da economia digital, inspirando-se fortemente na regulação europeia, como o Digital Markets Act (DMA). Afinal, as grandes plataformas transformaram-se simultaneamente em mercados e arenas de expressão, concentrando poder econômico e influência sobre o debate público. No entanto, a nota técnica do Instituto Sivis alerta para riscos significativos em diversas frentes, dentre eles, para a integridade do debate democrático.

Esse novo fenômeno da economia digital entrelaça temas antes tratados separadamente como liberdade de expressão, concorrência e inovação. Nesse caso, um mercado digital livre, aberto e competitivo não é apenas uma condição para eficiência econômica, mas também um pilar do pluralismo informacional e da liberdade comunicacional.

O debate sobre concorrência digital vai muito além da disputa entre empresas: envolve o controle sobre as infraestruturas que sustentam o ecossistema informacional

Por isso, toda intervenção estatal sobre plataformas digitais, ainda que motivada por razões econômicas, pode produzir efeitos sistêmicos sobre o debate público e a circulação de ideias. O Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência (SBDC), construído sobre bases técnicas e principiológicas, já prevê esses riscos. Sua atuação ex post, isto é, após a comprovação de condutas abusivas, garante proporcionalidade, devido processo legal e decisões baseadas em evidências. O Cade, como órgão julgador, é o guardião dessa lógica.

É justamente esse ponto que o novo projeto ameaça alterar. O PL 4.675/2025 propõe ampliar o poder regulatório do Cade com a criação da Superintendência de Mercados Digitais (SMD). Diferentemente do modelo atual, que intervém apenas após a constatação de infrações, a proposta adota um modelo ex ante: presume riscos antes que o abuso ocorra, impõe restrições preventivas e concede ao Cade poderes normativos para editar regras de conduta específicas para determinadas empresas.

As consequências afetam as esferas jurídica, econômica, mas especialmente a democrática. No plano democrático, o projeto, ao ampliar os poderes regulatórios e sancionatórios do Cade, cria o risco de transformar a autoridade antitruste em um verdadeiro censor digital. Além de contrariar a Constituição — que não prevê o Cade como agência reguladora —, a medida compromete o ambiente democrático ao permitir que o Estado intervenha indiretamente sobre plataformas que são, ao mesmo tempo, infraestruturas de comunicação e de circulação de ideias.

O debate sobre concorrência digital vai muito além da disputa entre empresas: envolve o controle sobre as infraestruturas que sustentam o ecossistema informacional. Sistemas de pagamento, gateways financeiros e fintechs tornaram-se componentes centrais da liberdade de expressão, já que a capacidade de comunicar depende, em muitos casos, da possibilidade de monetizar essa presença digital. Intervenções econômicas , como bloqueios a fintechs, restrições ao fluxo de dados, sanções financeiras ou exigências desproporcionais de compliance, podem ter efeitos diretos sobre a expressão online.

Quando criadores de conteúdo, jornalistas independentes ou organizações cívicas são impedidos de receber recursos de patrocinadores, doações ou plataformas internacionais, a liberdade de expressão torna-se não apenas vulnerável, mas economicamente insustentável.

Diante disso, entendemos que o novo projeto de lei apresenta diversos riscos jurídicos e econômicos, e, riscos à democracia e à liberdade de expressão (Leia mais na nota técnica). A atual regulação brasileira já é suficiente para a proteção da concorrência e para lidar com os desafios dos mercados digitais. É claro que mais debate sobre o tema é importante, mas ele deve vir acompanhado de evidências e reflexões que façam sentido para o contexto brasileiro.

Reproduzido da Gazeta do Povo. Leia a publicação original.

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