Julgamento do Marco Civil abre ciclo regulatório, que cabe ao Congresso fechar

 

09/07/2025

Por Jamil Assis | Diretor de Relações Institucionais do Instituto Sivis

Reproduzido do Estadão

Recentemente, o Supremo Tribunal Federal (STF) concluiu o julgamento sobre o artigo 19 do Marco Civil da Internet (Lei 12.965/2014), decisão que redesenhou o regime de responsabilidade civil das plataformas digitais no Brasil. Declarou-se a inconstitucionalidade parcial e progressiva do dispositivo – até então, um dos pilares da regulação da internet no País.

A tese firmada reconheceu que o artigo 19, ao exigir ordem judicial específica para a responsabilização civil dos provedores por conteúdos gerados por terceiros, estabelece uma regra válida, mas insuficiente. O Tribunal apontou uma “omissão parcial” do legislador diante da necessidade de proteger adequadamente bens jurídicos de alta relevância constitucional, como a democracia, a dignidade da pessoa humana e os direitos fundamentais.

A partir dessa constatação, o STF estabeleceu exceções em que a responsabilidade poderá ocorrer sem ordem judicial — como casos de conteúdos impulsionados, redes artificiais de distribuição e falhas sistêmicas diante da circulação massiva de conteúdos ilícitos. A decisão também estabeleceu um dever de cuidado reforçado para as plataformas em relação a certos crimes, desde atos antidemocráticos previstos no Código Penal (como tentativa de abolir o Estado Democrático de Direito ou impedir eleições) até crimes contra mulheres, como o previsto no artigo 147-B, que trata de danos emocionais que prejudiquem o pleno desenvolvimento da vítima.

Ainda que a intenção de proteger seja legítima, muitos desses tipos penais são vagos ou amplos, abrindo margem para interpretações subjetivas e, eventualmente, abusos. O próprio artigo 147-B, frequentemente citado como avanço no combate à misoginia, impõe desafios práticos: como delimitar “prejuízo à autodeterminação” ou “dano emocional”, especialmente num ambiente digital complexo e pouco transparente?

Os efeitos da decisão não se limitam às redes sociais. Plataformas que operam como marketplaces — como Amazon, OLX ou iFood — foram enquadradas sob regime de responsabilidade objetiva e solidária, com base no Código de Defesa do Consumidor. Essa mudança altera profundamente a lógica do modelo de negócios, tornando os provedores corresponsáveis por conteúdos e produtos de terceiros, independentemente de culpa. A responsabilização por chatbots e inteligência artificial generativa, como o ChatGPT, também entra no radar. Em tese, se um chatbot contribui para a propagação de conteúdo considerado ofensivo ou ilícito, a empresa responsável poderá ser acionada judicialmente.

Um avanço importante da decisão é o incentivo à criação de entidades autorregulatórias para definir parâmetros claros de notificação e transparência. Isso pode gerar maior previsibilidade e padronização, especialmente na relação com os usuários e com o poder público. Na prática, o cenário ainda é incerto. De um lado, as plataformas ainda avaliam o impacto. Do outro, o acórdão final ainda não foi publicado. A expectativa é de que isso ocorra após o recesso do Judiciário, em agosto. Só a partir daí será possível analisar com precisão o alcance da decisão e iniciar o debate sobre embargos declaratórios e ajustes interpretativos.

Mesmo especialistas têm muitas dúvidas. Quem será o órgão fiscalizador? O próprio STF? Alguma das agências mencionadas nos votos, como Anatel, ANPD ou CNJ? Como será feita a notificação que agora desencadeia a responsabilização? Bastará clicar no botão de denúncia da plataforma ou será necessário um procedimento formal, com identificação e qualificação do denunciante? Como se definirá uma “rede artificial de distribuição”? Algoritmos de recomendação entram nessa definição? E, por fim, quando essas novas regras começarão a valer — amanhã, no próximo ano, ou apenas com nova legislação?

Estamos diante de uma das decisões mais relevantes da história do Direito Digital no Brasil. Ela representa um novo capítulo na difícil tarefa de equilibrar liberdade de expressão, proteção de direitos fundamentais e responsabilidade das plataformas. Mas também inaugura um período de incerteza regulatória que exigirá muito diálogo entre os Poderes, o setor privado e a sociedade civil.

O Legislativo será inevitavelmente parte da resposta. Diante desse cenário, algumas alternativas surgem: constitucionalizar o artigo 19, restaurando o status quo com base no entendimento original do Marco Civil; reformar o artigo 21, delimitando com clareza o alcance do dever de cuidado e excluindo condutas ambíguas do regime de responsabilização automática; revisar os tipos penais que servem de gatilho para a responsabilização, excluindo ou restringindo aqueles com ampla margem de interpretação; ou redigir um novo PL 2630, abrangente e sistemático — ainda que enfrente os desafios do atual debate político.

 

O que não parece possível é ignorar o novo marco estabelecido pelo Supremo Tribunal Federal. A internet brasileira entrou num novo ciclo de regulação — mas esse ciclo, inaugurado por decisão judicial, ainda aguarda sua conclusão democrática no Congresso Nacional.

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