Defender o Supremo, como fez o ministro Fux, é reafirmar que sua força está em manter-se exemplar na forma de julgar
A defesa do Supremo Tribunal Federal (STF) tem sido invocada tantas vezes nos últimos anos que a expressão corre o risco de se tornar um chavão. Em geral, ela aparece associada à ideia de que defender o STF é blindá-lo contra ataques externos, preservar sua autoridade diante de quem ameaça o Estado Democrático de Direito ou ensaia aventuras autoritárias. Mas, como mostrou o ministro Luiz Fux em seu voto recente, defender o Supremo é, antes de tudo, defender sua própria integridade institucional.
Esse gesto não se faz com bravatas, mas com fidelidade à lei. O primeiro lembrete dado pelo ministro foi a necessidade de respeitar a competência jurisdicional. Diz o ministro: “O que está em jogo não é apenas o destino dos réus, mas os limites do próprio poder de julgar”. Um tribunal que se expande para além dos limites constitucionais enfraquece a legitimidade que o sustenta no longo prazo.
É nesse ponto que surge um dos aspectos mais delicados do processo: a relação causal com os atos de 8 de janeiro. Não ficou demonstrado de forma consistente o nexo entre as condutas imputadas a determinados acusados e a invasão das sedes dos Poderes. Sem essa conexão direta, não há fundamento para fixar a competência originária do Supremo por prerrogativa de função. Durante meses, nenhum deles exercia cargo que justificasse o foro especial. A perpetuação da competência da Corte, nesse contexto, soou como escolha de conveniência, não exigência constitucional. O devido processo exigiria que tais réus fossem julgados na primeira instância, com o direito a todos os recursos previstos.
Ainda que se admitisse a competência do Supremo, caberia discutir a forma de julgamento. Em processos que envolvem ex-presidentes da República e lideranças políticas, o rito natural seria o plenário. O contraste é evidente: os que invadiram e depredaram as sedes dos Poderes foram julgados pelo colegiado completo, enquanto os acusados de idealizarem os atos tiveram seu juízo em configuração diversa. A discrepância não apenas desafia a isonomia, mas fragiliza a percepção de imparcialidade da Justiça.
Em seguida, Fux reafirmou o sistema acusatório, que exige a separação entre acusar, defender e julgar, como condição da imparcialidade. “Não compete ao julgador substituir-se ao órgão acusador, nem ao defensor; compete-lhe zelar pela estrita observância das regras do processo”, registrou. Essa contenção preserva a confiança de que as decisões decorrem da lei, e não da vontade de um magistrado.
A ampla defesa foi outro ponto crucial. O ministro não ignorou que o material da acusação foi entregue de forma precária: “Esse arquivo fundamental para a narrativa ministerial (…) foi adicionado à pasta eletrônica na nuvem apenas dois dias antes dos interrogatórios, em evidente violação ao direito à ampla defesa (artigo 5.º, LV, da Constituição da República Federativa do Brasil)”. Se um réu não tem condições reais de responder às acusações, o processo perde legitimidade e a Justiça se converte em formalidade vazia. Trata-se de típico caso de document dumping, quando a acusação despeja documentos em volume ou formato que inviabiliza a resposta adequada da defesa em expediente incompatível com um processo justo. Aqui se incluiu a crítica à razoabilidade dos prazos: acelerar julgamentos sem permitir resposta efetiva da defesa compromete a justiça de se realizar em plenitude.
Por fim, reafirmou a individualização das penas. “Cada conduta deve ser analisada de forma individualizada”, escreveu ao absolver quando não havia provas robustas da participação direta. Justiça que não distingue indivíduos é apenas punição coletiva, incompatível com o Estado de Direito.
O ministro também advertiu para o risco de criminalizar a política. “Não se pode admitir que possam configurar tentativa de abolição do Estado Democrático de Direito discursos ou entrevistas, ainda que contenham rudes acusações aos membros de outros Poderes”. A advertência vale mais do que para o caso concreto: serve para lembrar que atos violentos devem ser punidos, mas palavras, por mais incômodas, pertencem ao espaço público.
O voto claramente desagradou quem ansiava por “vingança democrática”. Acertou Fux. Golpistas devem, sim, ser punidos. Ninguém que ataque o Estado Democrático de Direito pode esperar complacência. Mas a punição só é legítima quando os crimes são comprovados e aplicados segundo as regras postas. O combate ao autoritarismo não se faz com novos autoritarismos; faz-se com a lembrança de que a Constituição é, como ensinava Madison, a lei que governa os governantes. Quando ela é reinterpretada para atender à conveniência do momento, o Estado de Direito cede lugar ao arbítrio.
Defender o Supremo, como fez o ministro Fux, é reafirmar que sua força não está em decretar punições exemplares, mas em manter-se exemplar na forma de julgar. É preservar a diferença entre o governo dos homens, sujeito a paixões, pressões e voluntarismos e o governo das leis, que exige paciência, rigor e autocontenção. É um lembrete de que a defesa do Estado de Direito começa pelo respeito às regras que o tornam possível.
Por Henrique Zétola e Jamil Assis.
Reproduzido do Estadão. Leia a publicação original.