Cuidar das crianças exige corresponsabilidade, não apenas legislação

Precisamos de mecanismos que previnam excessos de regulamentação infralegal, assegurando segurança jurídica e previsibilidade

O tema da adultização precoce de crianças e adolescentes nas plataformas digitais tem dominado os debates nas últimas semanas. Diante dessa preocupação, o PL 2628/22, já aprovado pela Câmara e ainda pendente de votação no Senado, teve sua tramitação acelerada.

Não há ninguém que em sã consciência discorde da importância de proteger e preservar crianças e adolescentes. Nesse sentido, o PL 2628 aborda pontos fundamentais para garantir maior segurança no ambiente digital, como verificação etária para acesso a determinados conteúdos — especialmente os de natureza pornográfica.

No entanto, é necessário examinar o PL com maior cautela, pois medidas que aparentam oferecer proteção podem, na verdade, prejudicar justamente as crianças e adolescentes que se pretende resguardar. Isso ocorre por meio de mecanismos previstos no projeto, como a possibilidade de remoção de conteúdo sem ordem judicial sempre que houver indícios de violação de direitos desse público, por exemplo.

Sendo assim, diante da ambiguidade legal e do risco de multas milionárias, as empresas podem optar pela remoção preventiva de conteúdo. Essa postura pode resultar na exclusão de materiais legítimos, como protestos em que crianças apareçam, cerimônias religiosas com a presença de menores ou até campanhas voltadas à própria proteção infantil. Ou seja, ao tentar proteger, a medida pode acabar restringindo indevidamente manifestações importantes.

As experiências internacionais mostram que medidas legais voltadas à proteção de crianças no ambiente digital, quando formuladas de maneira vaga, podem gerar efeitos perversos.

No Reino Unido, por exemplo, já ocorreu de filtros de internet bloquearem conteúdos legítimos, como páginas de ajuda humanitária ou materiais de educação sexual. Em vez de proteger, esse tipo de excesso pode silenciar justamente aqueles que buscam garantir a segurança e o bem-estar das crianças. Ao tentar eliminar riscos a qualquer custo, abre-se espaço para uma remoção preventiva que restringe o acesso a informações relevantes, enfraquece campanhas de proteção e dificulta debates essenciais.

Como diz um antigo provérbio africano: “É preciso uma aldeia inteira para educar uma criança”. Em outras palavras, nenhuma lei, sozinha, será capaz de oferecer todos os subsídios necessários para proteger crianças e adolescentes. Essa proteção exige corresponsabilidade, envolvendo pais, escolas e instituições nesse cuidado compartilhado.

Dessa forma, acreditamos que o PL 2628 ainda precisa de ajustes. O último relatório, publicado em 21 de agosto após audiência em Comissão Geral na Câmara, trouxe um avanço importantíssimo ao qualificar as notificações como forma de evitar abusos ou denúncias infundadas.

Em relação à inclusão de contrapesos regulatórios, o novo relatório também já amenizou parcialmente pontos que não estavam suficientemente claros no texto original. No entanto, ainda há necessidade de atenção. É fundamental estabelecer mecanismos de freios e contrapesos que previnam excessos de regulamentação infralegal, assegurando segurança jurídica e previsibilidade. Além disso, deve haver espaço para revisões periódicas, de modo a manter as regras atualizadas sem abrir margem para arbitrariedades.

Assim, ainda recomendamos mais dois pontos de atenção: o primeiro é a abertura para um modelo que permita corregulação para as plataformas, combinando normas claras, auditorias independentes e transparência sobre denúncias e remoções. A abertura desses processos ao escrutínio público fortalece a confiança nas medidas aplicadas e garante maior legitimidade.

Por fim, o princípio da subsidiariedade precisa ser o norte. O primeiro escudo de proteção da criança é a família, seguido pela escola e pelas instituições mais próximas. As políticas públicas devem fortalecer esse cuidado de base, atuando como mediadoras e não substitutas. Investir em educação para democracia e literacia midiática é, portanto, essencial para que crianças, jovens e adultos desenvolvam competências que lhes permitam navegar no ambiente online de forma segura e responsável.

Nenhuma lei, por mais robusta que seja, conseguirá substituir a “aldeia” necessária para proteger crianças e adolescentes. É preciso a corresponsabilidade de todos: pais atentos, escolas vigilantes, instituições ágeis e plataformas digitais comprometidas com a transparência. Só assim teremos normas que, de fato, se traduzam em proteção efetiva.

Por Sara Clem | Analista de Pesquisa do Instituto Sivis

Reproduzido de Jota

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