Proteger magistrados contra perseguições políticas é necessário; mas proteger ministros contra toda forma de fiscalização é outra coisa
A decisão monocrática de Gilmar Mendes que suspendeu trechos da Lei do Impeachment é mais um sinal de que estamos avançando para um modelo de poder cada vez menos controlável e com dificuldades de aceitar limites. O STF, que deveria ser o guardião do pacto constitucional, se converte no poder menos sujeito a contrapesos no Brasil.
Não bastasse essa última notícia, o que temos é um conjunto de práticas que se conformam a um padrão. Estudos recentes, como o da Fundação FHC, chamam atenção para o uso exagerado de decisões monocráticas e de julgamentos virtuais que, embora previstos, hoje são empregados de forma que reduz o escrutínio público e concentra poder.
Com isso, vemos perdas não apenas na dinâmica interna do tribunal, mas também no enfraquecimento do debate público mais amplo, já que limita a participação de especialistas e entidades que poderiam contribuir com perspectivas técnicas e sociais relevantes. Quando as decisões ocorrem de forma acelerada e com pouca visibilidade, perde-se a oportunidade de construir interpretações mais consistentes e de envolver a sociedade em temas que moldam diretamente o funcionamento do Estado.
O problema central é que instrumentos concebidos para situações excepcionais passaram a ser utilizados como rotina. O julgamento virtual, que deveria agilizar o rito, acabou se tornando espaço para decidir questões estruturais do Estado sem o debate público adequado. A decisão monocrática, que deveria servir para casos urgentes, virou uma ferramenta permanente para decisões de enorme impacto político e institucional. Quando essas práticas se normalizam, diminui a transparência e cresce a percepção de que o tribunal opera de maneira distante dos mecanismos tradicionais de responsabilização.
O argumento de que é preciso proteger o tribunal de possíveis interferências políticas carrega certa ironia. Foi justamente o Supremo que, nos últimos anos, mergulhou com frequência no centro da disputa política. Não se trata de discutir o mérito de cada caso, mas de reconhecer que o tribunal ultrapassou repetidamente a linha que separa o árbitro do participante. Ao atuar com intensidade na arena política, contribuiu para a escalada de tensões. Agora, ao buscar blindagens adicionais, tenta se proteger de um ambiente que ele próprio ajudou a moldar.
Democracias sólidas não dependem apenas de textos constitucionais. Elas se sustentam na disposição prática de cada poder de reconhecer seus próprios limites e de atuar dentro de parâmetros claros de controle e transparência. Quando uma instituição se acostuma a operar sem contestação ou sem revisão externa, mesmo que amparada formalmente pela lei, o resultado é um desgaste gradual da legitimidade e uma sensação de afastamento em relação à vida democrática cotidiana. A ideia de equilíbrio entre poderes não é abstrata. Ela se realiza diariamente na forma como cada um deles aceita ser confrontado, revisado e questionado.
O ponto fundamental é que blindagem institucional é inaceitável em qualquer poder. Criticamos o Congresso quando age para se proteger indevidamente. A crítica deve valer ainda mais quando se trata do órgão de cúpula do Judiciário. Um sistema democrático exige que ninguém esteja imune ao controle republicano.
Quando um tribunal constitucional se coloca acima de qualquer mecanismo de responsabilização, ele se transforma em um superpoder. Isso corrói a lógica dos freios e contrapesos e alimenta a noção de que vivemos um estado de exceção informal, no qual decisões excepcionais se acumulam a ponto de se tornarem regra.
Não há democracia madura sem responsabilidade pública. Uma proposta urgente é fazer com que o Código de Ética da magistratura se aplique integralmente também aos ministros do Supremo. A sociedade espera do ápice do Judiciário o mais alto padrão de conduta e transparência. Qualquer afastamento disso alimenta a sensação de privilégio e de impossibilidade de responsabilização.
A adoção plena do Código de Ética teria também o papel de dar previsibilidade às condutas esperadas de ministros que ocupam posição tão central. Isso incluiria regras claras sobre manifestações públicas, participação em eventos políticos, relações institucionais e até limites para interações que possam gerar conflito de interesse. Ao estabelecer parâmetros explícitos, reduz-se a margem para interpretações oportunistas e fortalece-se a confiança de que o exercício do cargo está submetido a padrões elevados, condizentes com a importância do tribunal.
Proteger magistrados contra perseguições políticas é necessário. Mas proteger ministros contra toda forma de fiscalização é outra coisa. Em vez de fortalecer a democracia, fragiliza-se a confiança pública. Cada vez que naturalizamos o excepcional, afastamos um pouco mais a Constituição do povo e aproximamos a lógica de um poder sem limites. O equilíbrio entre os poderes não depende apenas do texto da lei. Depende da prática e da disposição real de cada um de aceitar limites. E é essa disposição que hoje parece faltar exatamente em quem deveria ser o seu maior guardião.
Publicado no Jota. Leia a publicação original.
Por Jamil Assis | Diretor de Relações de Institucionais do Instituto Sivis


