Repensando o nosso federalismo

O Brasil precisa centralizar decisões ou fortalecer escolhas locais? O texto debate federalismo e subsidiariedade na educação especial e na segurança pública e convida você a refletir sobre os rumos do país.

Se queremos um Brasil mais seguro e justo, o caminho não passa por concentrar decisões em poucos gabinetes

Nos últimos meses, dois debates oportunizaram um novo debate sobre o nosso federalismo: o decreto federal de educação especial e a tentativa de recentralizar diretrizes da segurança pública por meio de uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC). Em ambos os casos, o que está em jogo é saber onde as decisões devem ser tomadas para melhor respeitar a dignidade das pessoas e produzir políticas eficazes.

Partimos de uma ideia simples: a sociedade deve organizar-se para permitir que cada pessoa busque sua realização. O princípio de subsidiariedade oferece um critério concreto: tudo o que puder ser resolvido por indivíduos, famílias, associações e governos locais não deve ser concentrado em instâncias superiores. Quando o tecido social falha, o Estado intervém de modo reparador e provisório, não substitutivo, respeitando a primazia da sociedade civil e das esferas mais próximas do cidadão.

A literatura em administração pública aponta na mesma direção. Estudos sobre governos locais em países europeus mostram que a subsidiariedade é considerada um pré-requisito da autogestão moderna, pois complementa a separação de poderes com a pergunta: em que nível essa decisão será mais eficaz? O ideal é que decisões de administração pública devem ser tomadas no nível mais efetivo possível, o que em geral significa mais perto da comunidade afetada.

É exatamente o contrário do que ocorre hoje no debate sobre educação especial. O Decreto 12.686/2025, ao redefinir a Política Nacional de Educação Especial, retira da legislação a ideia de atendimento “preferencialmente” na rede regular e caminha para a obrigatoriedade de matrícula em escolas comuns. Na prática, enfraquece instituições como as Associações de Pais e Amigos dos Excepcionais (Apaes) e restringe a liberdade de escolha de famílias e redes locais, embora essas entidades atendam pessoas com deficiências severas para as quais a escola regular, hoje, dificilmente dá conta.

Notamos uma sequência de pressões normativas e judiciais contra essas entidades: de ações diretas de inconstitucionalidade questionando leis que garantem recursos às Apaes até PECs e diretrizes para o novo Plano Nacional de Educação que, se mal desenhadas, podem asfixiar o modelo especializado em nome de uma “inclusão total” abstrata.

Sob a lente da subsidiariedade, a pergunta não é “inclusão ou segregação?”, mas “quem está em melhor posição para decidir o que é inclusão real para cada aluno?”. Famílias, equipes técnicas locais, redes municipais e estaduais, que conhecem os casos concretos, ou um desenho único definido em Brasília? Ao substituir a ponderação caso a caso por um modelo rígido, a centralização dilui a diversidade das necessidades, aumenta a burocracia e enfraquece atores da sociedade civil que historicamente preencheram lacunas do Estado.

Na segurança pública, o movimento para centralização também produz paradoxos. Pesquisas após a megaoperação recente no Rio de Janeiro indicam reprovação majoritária à atuação do governo federal em segurança, enquanto moradores de áreas mais afetadas, apesar da enorme letalidade, aprovam em grande número operações robustas, numa realidade em que parte relevante do território nacional está sob domínio de facções criminosas.

A discussão sobre a PEC da Segurança Pública reforça o alerta. Governadores de diferentes Estados criaram o “consórcio da paz”, iniciativa de cooperação com troca de informações e operações conjuntas, e manifestaram preocupação com a ideia de ampliar o poder da União para definir diretrizes gerais. À luz da subsidiariedade, faria mais sentido uma União focada em inteligência, cooperação interestadual, financiamento e enfrentamento ao crime transnacional, com Estados e municípios responsáveis pela prevenção cotidiana, pelo policiamento de proximidade e pela articulação com políticas sociais.

As duas agendas (educação e segurança) mostram por que o debate sobre divisão de competências não é técnico nem neutro. Centralizar pode parecer a resposta “forte” em momentos de crise, mas frequentemente gera políticas genéricas, distantes das pessoas, pouco sensíveis às diferenças regionais e menos abertas à participação. Uma sociedade comprometida com a dignidade humana precisa do contrário: mais espaço para decisões locais, experiências diversas e a ação das associações, escolas especializadas, organizações comunitárias e governos subnacionais.

Propostas à luz da subsidiariedade não querem acabar com o Estado, mas recolocá-lo no seu devido lugar: guardião das condições estruturais do bem comum, pronto para apoiar quando o nível local falha, mas cuidadoso em não sufocar a autonomia de quem está na ponta.

Se queremos um Brasil mais seguro e justo, o caminho não passa por concentrar decisões em poucos gabinetes. Devemos levar a sério o princípio de que os problemas devem ser enfrentados, sempre que possível, no nível mais próximo de quem os vive, com o apoio solidário das instâncias superiores, e não sob sua tutela permanente. Como supostamente disse Churchill, não devemos desperdiçar uma boa crise. Quem sabe possamos aproveitar as atuais para repensar nosso federalismo.

Conteúdo reproduzido do Estadão. Leia a publicação original.

Por Jamil Assis | Diretor de Relações Institucionais do Instituto Sivis

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