Regulação econômica das plataformas digitais pode, sim, afetar a liberdade de expressão

Projeto que cria superpoderes para o Cade pode reduzir o alcance de vozes no espaço digital

O governo apresentou ao Congresso o Projeto de Lei 4675/2025, que cria a Superintendência de Mercados Digitais dentro do Cade e concede a ela o poder de impor “obrigações especiais” a grandes plataformas digitais. À primeira vista, trata-se de uma atualização da legislação concorrencial para a era digital. Mas, por trás do discurso técnico, o projeto é desnecessário e perigoso. Ele repete regras já existentes e, pior, altera o modo como o Estado se relaciona com o mercado e com a livre circulação de ideias.

O Brasil já dispõe de um dos arcabouços regulatórios mais completos do mundo. A Lei 12.529/2011 pune discriminação, autopreferência, venda casada e abuso de posição dominante. A Lei Geral de Proteção de Dados limita o uso e o cruzamento de informações pessoais. O Código de Defesa do Consumidor assegura transparência e mecanismos de reparação. Todas as obrigações previstas no projeto — interoperabilidade, portabilidade, proibição de exclusividade, dever de transparência — já podem ser exigidas com base nessas normas.

A diferença não está na capacidade de atuação do Estado, mas no método. As leis atuais permitem que o Cade e demais órgãos ajam ex post, isto é, depois que uma conduta nociva é identificada, com base em provas, contraditório e motivação técnica. O novo projeto, ao contrário, adota um modelo ex ante, que presume o risco antes da infração, impõe restrições preventivas e transforma o Cade em uma autoridade capaz de editar regras de conduta específicas para determinadas empresas. É uma mudança sutil, mas profunda, e politicamente perigosa.

Imagine um parlamentar prestes a discursar em um estádio lotado. Ele continua com o microfone ligado, as luzes acesas e o direito de falar garantido. Mas o governo decide instalar catracas na entrada e liberar o acesso apenas a uma fração do público. O som ecoa, mas quase ninguém escuta. É exatamente isso que o projeto faz com a comunicação digital. Se o Cade puder restringir o acesso das plataformas aos dados que conectam oradores e ouvintes, um político continuará “postando” — mas seu discurso, antes dito em um estádio, passará a ser feito numa sala fechada, de alcance limitado. O microfone segue ligado, mas o estádio foi trancado.

E talvez seja essa a questão de fundo: por que o governo quer esse poder sobre as plataformas? O projeto não apenas altera o método de regulação, como também introduz uma separação artificial entre “mercados digitais” e o restante da economia — como se práticas de autopreferência ou abuso de dados fossem exclusivas da internet. Não são. Um supermercado pode privilegiar seus próprios produtos nas prateleiras mais visíveis. Um posto de gasolina pode ajustar preços automaticamente conforme o valor dos concorrentes próximos. O que o texto propõe, portanto, não é proteger a concorrência, mas criar um regime de controle seletivo, aplicável apenas ao espaço digital — exatamente onde o debate público e político hoje acontece.

Até mesmo análises internacionais, como a da U.S. Chamber of Commerce, alertam para esse risco. A entidade destacou que legislações semelhantes na Europa, como o Digital Markets Act, resultaram em incerteza regulatória, retração de investimentos e aumento de custos para consumidores, sem ganhos reais de concorrência. Em vez de tornar o mercado mais dinâmico, o modelo criou um ambiente de paralisia e dependência de autorização estatal — o mesmo caminho que o Brasil agora se prepara para seguir.

O PL 4675/2025 não corrige lacunas — muda as regras do jogo. Dá ao Estado o poder de agir antes da infração, de regular antes do abuso e de restringir antes da fala. É um modelo que começa com a promessa de proteger o consumidor, mas termina com o controle do alcance das vozes. O silêncio de uma sociedade raramente nasce de censura explícita; nasce de catracas invisíveis que limitam o público de quem pensa diferente. E é exatamente isso que esse projeto, em nome da concorrência, está prestes a instalar.

Reproduzido do Jota. Leia a publicação original.

Por Sara Clem | Analista de pesquisa no Instituto Sivis

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